COOPERAÇÃO, SOLIDARIEDADE E SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA: POR UMA ECONOMIA PARA OS SERES VIVOS E SOCIAIS
Por:
Roberto Marinho Alves da Silva
Ronalda Barreto Silva
O Dia Mundial do Meio Ambiente , celebrado da data de 05 de junho, é um momento propício para uma reflexão sobre os atuais rumos e as alternativas para garantir a vida no nosso planeta, conforme o apelo da Carta da Terra (2000) de que “Devemos nos juntar para gerar uma sociedade sustentável global fundada no respeito pela natureza, nos direitos humanos universais, na justiça econômica e numa cultura de paz”.
Esse propósito é fundamental nesses tempos difíceis em que vivemos em que estão explícitos os grandes dilemas e desafios sociais, sanitários, ambientais, econômicos, éticos e políticos que afligem a humanidade. Estamos em uma encruzilhada civilizatória na qual a preservação da vida, em todas as suas formas, sofre constantes ameaças com a saga predatória de um tipo de desenvolvimento que produz riquezas gerando miséria e depredando o meio ambiente, mantendo a exclusão de bilhões de pessoas e o esgotamento de recursos naturais.
Esses aspectos colocam em risco o futuro da vida na terra, conforme o diagnóstico da Carta da Terra (2000): “Os padrões dominantes de produção e consumo estão causando devastação ambiental, esgotamento dos recursos e uma massiva extinção de espécies. Comunidades estão sendo arruinadas. Os benefícios do desenvolvimento não estão sendo divididos equitativamente e a diferença entre ricos e pobres está aumentando. A injustiça, a pobreza, a ignorância e os conflitos violentos têm aumentado e são causas de grande sofrimento”.
A situação é ainda mais grave nos países periféricos e dependentes no sistema capitalista globalizado onde, nos últimos anos, verificamos os sinais de mais uma forte ofensiva para recompor as taxas de reprodução, acumulação e centralização do capital com base na “reprimarização da economia”. Esse retrocesso civilizatório com expansão agressiva de um modelo primário exportador, com foco na exploração de matérias-primas minerais e da produção agropecuária, causa sérios impactos ambientais, sociais e culturais, além de multiplicar os conflitos territoriais e agrários contra remanescentes de povos originários e comunidades tradicionais.
Esse processo vem sendo combinado com uma perspectiva neoconservadora que está se alastrando em relações sociais orientadas pelos argumentos da competitividade, da intolerância (ódio) e do individualismo exacerbado que relativizam o valor da vida.. Essas formas de autoritarismo dão suporte às medidas neoliberais que ampliam as desigualdades sociais decorrentes da máxima expropriação da classe trabalhadora, com elevado desemprego, precarização das relações de trabalho e retrocesso nos direitos sociais. Trata-se, conforme alerta Marilena Chauí (2019), de uma perspectiva totalitária orientada pelos valores do mercado que “recusa a heterogeneidade social, a existência de classes sociais, da pluralidade de modos de vida, de comportamentos, de crenças e opiniões”.
Esse contexto foi agravado com a crise sanitária global da Covid-19 que ceifa milhares de vidas e piora as condições de sobrevivência da população empobrecida, impactando no aumento da fome no mundo e na piora das condições de extrema pobreza para bilhões de pessoas, aprofundando as iniquidades sociais que já vinham se agravando antes da pandemia. Fica explícito que o modo de produção capitalista, cuja forma de sociabilidade é orientada pelos valores do mercado, transforma todos os seres em mercadorias (BERTERO, 1997), com custos ambientais e humanitários que podem provocar um colapso civilizatório, “pondo em risco as possibilidades de sobrevivência da espécie humana” (FURTADO, 1974, p. 75).
Ao analisar a originalidade da crise econômica e sanitária da Covid-19, Chesnais (2020) chama a atenção para estudos que mostram a relação entre o avanço da fronteira agrícola e exploração mineral, a destruição de habitats naturais e o surgimento de doenças infecciosas, de forma que novas pandemias podem atingir o planeta se o desmatamento e a perda de biodiversidade continuarem em seu ritmo catastrófico atual. Da mesma forma, ao analisar a crise estrutural do sistema do capital, Mészáros (2009) chama a atenção para essa “processualidade incontrolável” e profundamente destrutiva de uma lógica societária voltada prioritariamente para a produção e consumo de mercadorias que impulsiona a destruição da natureza em escala global jamais vista.
A crise global agravada pelo coronavírus colocou em xeque os argumentos que tentam justificar os sacrifícios da sociedade, a minimização da esfera pública estatal e a flexibilização de medidas de proteção ao meio ambiente para garantir o crescimento da economia. O Relatório da Oxfam de 2021 é enfático nesse sentido ao apontar as iniquidades sociais e econômicas do “vírus da desigualdade”, expondo uma realidade contraditória de aumento dos lucros de empresas de diversos setores (financeiro, saúde, comunicações etc.) com a situação de calamidade global. Aumentou o número de bilionários (inclusive no Brasil) e a fatia da riqueza global controlada pela elite mais rica ficou ainda mais concentrada (EL PAÍS, 2021). São esses ganhadores e seus asseclas, atuando como verdadeiros “sacerdotes do capital”, que mais pressionam para que “salvem a economia”, estabelecendo a prioridade do lucro em detrimento da preservação da vida.
Contra essas iniquidades é preciso resgatar e construir princípios, valores e práticas de solidariedade e de cooperação como condição fundamental para salvar o planeta terra, garantindo a vida humana. Boff (2020) alerta que a pandemia nos “obriga a pensar: o que é o essencial?”, pois “o que nos salva como seres vivos e sociais é a solidariedade, a cooperação, a generosidade e o cuidado de uns para com os outros e para com o ambiente”.
Felizmente, no Brasil e em todas as partes do mundo, também houve uma verdadeira explosão de ações de solidariedade para amenizar os impactos sanitários e sociais da pandemia do Covid-19. O que mais impressionou foram as iniciativas das pessoas mais pobres, a exemplo de mulheres costureiras de empreendimentos de economia solidária nas áreas urbanas e de agricultores e agricultoras do Movimento dos Sem Terra (MST) que distribuíram milhões de máscaras de proteção facial (quando não havia estoque deste equipamento de proteção individual na pandemia) e milhares de toneladas de alimentos nas áreas de periferia para a população mais vulnerável.
No caso brasileiro, as iniciativas de economia solidária vinham sendo fomentadas como estratégias de trabalho associado e para viabilizar a pequena produção familiar e de setores populares em áreas rurais e urbanas, dinamizando cadeias produtivas solidárias e sustentáveis, com base em um novo fundamento ético que estabelece a primazia das necessidades sociais, culturais e ambientais sobre o crescimento econômico, reconhecendo o valor intrínseco da natureza.
Tendo por orientação valores não mercantis como a solidariedade e a democracia, essas estratégias econômicas alternativas incorporam dimensões culturais, étnicas e ecológicas da sustentabilidade do desenvolvimento enquanto dimensões de um mesmo processo integral de emancipação humana (SILVA e SILVA, 2020). Nesse sentido, as iniciativas de economia solidária mantém ativa na atualidade uma “utopia militante” de que os trabalhadores associados podem criar suas próprias organizações coletivas e autogestionárias e desafiar a prevalência das relações capitalistas de produção, de modo que “a cooperação e a igualdade tomem o lugar da competição e da exploração” (SINGER, 1998).
Tomamos aqui como exemplo, a coleta seletiva e a reciclagem popular que são realizadas por milhares de associações e cooperativas de catadores e catadoras de materiais recicláveis. Além de uma alternativa de trabalho e renda para esses homens e mulheres foram descartadas pela sociedade, reintroduzem o que antes era “lixo” na cadeia de valor da reciclagem, contribuindo para a educação ambiental, a saúde pública e a preservação do meio ambiente. O trabalho associado em organizações coletivas solidárias é uma forma de “resgate humano”, considerando que as condições de trabalho de catadores e catadoras que atuam individualmente nas ruas e nos lixões são marcadas pela precariedade com elevado risco de acidentes e adoecimentos, além de serem estigmatizados (confundidos com o seu objeto de trabalho) e vítimas de preconceitos.
Do ponto de vista político, as organizações de catadores e catadoras lutam para que a população brasileira conquiste o direito a uma gestão dos resíduos sólidos urbanos, conforme estabelecido na Política Nacional de Resíduos Sólidos. Confrontando a lógica empresarial e o pragmatismo político de gestores públicos, estão na linha de frente da luta em defesa da vida, contra a incineração dos resíduos sólidos que apresentam profundos impactos ambientais e sanitários com a liberação de gases altamente tóxicos a partir da combustão.
Encontramos essas mesmas características de defesa da vida na produção agroecológica realizada por milhares de agricultores e agricultoras familiares no Brasil, em grande parte, organizados em iniciativas associativas e de cooperação agrícola que possibilitam contatos diretos entre produtores e consumidores nas feiras agroecológicas e em outros espaços de comercialização. A mudança de hábitos alimentares, a educação para o consumo consciente e o cuidado com a saúde das pessoas e da terra (do solo, água, vegetação e outros seres vivos) nos cultivos agroalimentares orientados pela agroecologia, são testemunhas vivas dos princípios, valores e práticas de solidariedade presentes na economia solidária.
Da mesma forma, nas organizações e redes de produção artesanal, têxtil e de confecções, de processamento de alimentos, de extrativismo sustentável, de turismo de base comunitária e de finanças solidárias (fundos solidários, bancos comunitários de desenvolvimento e cooperativismo de crédito solidário), entre outras tantas iniciativas de economia popular e solidária que encontramos no Brasil, os sistemas produtivos sustentáveis e solidários são valorizados enquanto estratégias inovadoras de organização do trabalho em uma relação harmoniosa com a natureza, coerente com princípios da Carta da Terra (2000) de “Adotar padrões de produção, consumo e reprodução que protejam as capacidades regenerativas da Terra, os direitos humanos e o bem-estar comunitário”.
Apesar de ter ressurgido com força no Brasil, no final do século XX, a economia solidária expressa um conjunto diverso de estratégias econômicas alternativas orientadas por racionalidades de cooperação, reciprocidade e autogestão que existem desde os povos originários e que foram subordinadas e substituídas por formas econômicas baseadas na máxima exploração da natureza e do trabalho humano como meio de acumulação e concentração de riqueza. Nessa perspectiva, a sustentabilidade implica e requer necessariamente a consideração das características físicas, geográficas e simbólicas dos espaços territoriais vividos que considere as crenças, as experiências, a memória e as diversas formas simbólicas de relação de uma dada população com a sua realidade local. Daí a importância para o resgate, valorização e preservação da cultura e dos modos de vida de povos originários e comunidades tradicionais que, conforme já apontamos, estão sendo dizimadas pela expansão (na realidade um retrocesso) da economia primário exportadora.
Apesar dessas potencialidades virtuosas, as iniciativas de economia solidária são fragilizadas e enfrentam enormes obstáculos e barreiras que impedem a expansão de suas capacidades. Daí a importância da promoção de políticas públicas de economia solidária que possibilitem o acesso a conhecimentos, tecnologias sociais, apoio e fomento para estruturação e organização da produção e da comercialização, do crédito e disseminação das finanças solidárias. Os governos devem promover ambientes institucionais favoráveis para que os empreendimentos de economia solidária tenham um tratamento diferenciado no acesso às políticas públicas, o adequado tratamento tributário, na contratação ou aquisição de bens e serviços pelos órgãos governamentais, além de direitos de seguridade social.
Todas essas iniciativas requerem o reconhecimento político (adesão e valorização) e institucional (leis, normas, fundos e espaços públicos) da economia solidária como uma “política e estratégia de desenvolvimento” que possibilita a geração de trabalho e a melhoria da renda das pessoas em situação de pobreza com a dinamização do desenvolvimento local e territorial, buscando elevar o nível de produtividade, considerando as diversidades ecológicas e culturais, conforme propõe a Carta da Terra (2000), para “Promover a justiça econômica e social, propiciando a todos a obtenção de uma condição de vida significativa e segura, que seja ecologicamente responsável”.
Referências
BERTERO, J. F. (1997). Gênese da sociabilidade capitalista: uma leitura de “A Miséria da Filosofia” de Karl Marx. Estudos de Sociologia, São Paulo, v.2, n. 03, p. 9-34.
BOFF, L. (2020). O Covid-19 nos obriga a pensar: o que é o essencial? Revista IHU – On Line. Recuperado em 20 de novembro de 2020 de http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/602857-o-covid-19-nos-obriga-a-pensar-o-que-e-o-essencial
CHESNAIS, F. (2020). A originalidade da crise econômica e sanitária da Covid – 19. A Terra é Redonda. Recuperado em 22 de novembro de 2020 de https://aterraeredonda. com.br/a-originalidade-da-crise-economica-esanitaria-da-covid-19.
EL PAÍS – Brasil. (2021). Número de bilionários latino-americanos aumenta 40% durante a pandemia de Coronavírus. Jornal El País – Brasil. Recuperado em 30 de maio de 2021 de https://brasil.elpais.com/economia/2021-05-29/numero-de-bilionarios-latino-americanos-aumenta-40-durante-a-pandemia-de-coronavirus.html?prm.
FURTADO, C. (1974). O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
MÉSZÁROS, I. (2009). A Crise Estrutural do Capital. São Paulo: Boitempo.
CARTA DA TERRA. (2000). Recuperada em 20 de março de 2020 de http://www.cartadaterrabrasil.com.br/prt/index.html
OXFAM. (2021) O vírus da desigualdade. Unindo um mundo dilacerado pelo coronavírus por meio de uma economia justa, igualitária e sustentável. Relatório da Oxfam. Recuperado em 02 de fevereiro de 2021 de https://www.oxfam.org.br/.
SILVA, R. M. A.; SILVA, R. B. (2020). Estrategias económico alternativas en América Latina: ¿prácticas de resistencia instrumentos de transformación? In: Ela Pérez & Adriana Gonzales (eds.) Políticas públicas, estrategias económico alternativas y derechos económicos de las mujeres. Bilbao, España; Lima, Peru: Hegoa; Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2020, p. 177-195.
SINGER, P. (1998). Uma utopia militante. Repensando o socialismo. Petrópolis: Vozes.